O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente, por unanimidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 85, reconhecendo como constitucionais os Decretos nº 11.366/2023 e nº 11.615/2023, editados pelo Presidente da República para regulamentar o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003). A decisão representa um marco jurídico e político na reconstrução da política pública de controle de armas no Brasil, após um período de ampla flexibilização ocorrido entre 2019 e 2022.
Os ministros da Corte entenderam que os referidos decretos respeitam os limites do poder regulamentar conferido ao chefe do Executivo (nos termos do art. 84, IV, da Constituição Federal), ao mesmo tempo em que promovem a efetiva proteção dos direitos fundamentais à vida, à segurança e à paz social – pilares do artigo 5º e do artigo 144 da Carta Magna. A decisão ainda está alinhada aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 16 (ODS 16), que preconiza a promoção de sociedades pacíficas e inclusivas, com instituições eficazes e o fortalecimento do Estado de Direito.
Desde a promulgação do Estatuto do Desarmamento, em 2003, o Brasil consolidou uma política pública voltada à restrição do acesso a armas de fogo como forma de combater os altos índices de violência. No entanto, a partir de 2019, essa política sofreu um processo de desmonte institucional, com a edição de diversos decretos que flexibilizaram o porte e a posse de armas, principalmente por colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs). Essas medidas, promovidas sem o correspondente fortalecimento dos mecanismos de fiscalização, contribuíram para o aumento do número de armas em circulação e fragilizaram o controle estatal sobre o armamento da população civil. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que, ao final de 2022, o número de registros de CACs havia quase triplicado em comparação com 2018.
Com o início do novo governo em 2023, foi anunciado um esforço para reverter esse cenário, resultando na edição dos Decretos nº 11.366/2023 (com caráter transitório) e nº 11.615/2023 (regulamentação definitiva). Ambos têm como foco a reconstrução da política nacional de desarmamento, reestabelecendo critérios técnicos e jurídicos mais rigorosos para o acesso a armas e munições.
Entre as principais medidas estabelecidas pelos decretos, destacam-se: a centralização do controle de armas no Sistema Nacional de Armas (SINARM), sob responsabilidade da Polícia Federal; a redução dos limites de armas e munições que cada cidadão pode adquirir; a exigência de demonstração concreta de necessidade para aquisição de arma de fogo de uso permitido; a obrigatoriedade de avaliação psicológica periódica para os CACs; e a limitação das atividades de caça e tiro desportivo. Além disso, os decretos preveem normas de transição que respeitam o direito adquirido daqueles que obtiveram registros sob a regulamentação anterior, em consonância com o artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição.
No julgamento da ADC 85, o Plenário do STF reconheceu que os decretos não inovaram o ordenamento jurídico de forma autônoma, mas apenas regulamentaram dispositivos legais já existentes, como prevê o art. 84, IV, da Constituição Federal. A Corte reiterou ainda o entendimento firmado em ações anteriores, como a ADI 6.119, a ADI 6.139 e a ADI 6.466, de que não existe direito fundamental ao acesso irrestrito a armas de fogo.
Segundo o voto do relator, ministro Edson Fachin, “os decretos ora analisados representam um retorno à legalidade e ao compromisso do Estado brasileiro com a preservação da vida e com o combate à violência armada, conforme manda a Constituição”.
A decisão também foi saudada por especialistas em segurança pública e representantes de organizações da sociedade civil, que há anos denunciam os impactos negativos da proliferação de armas sobre os indicadores de homicídio, feminicídio e acidentes domésticos.
A decisão do STF também reafirma o compromisso do Brasil com a Agenda 2030 da ONU, particularmente com o ODS 16, que visa “promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”. Ao validar os decretos que fortalecem o controle estatal sobre o armamento civil, o Brasil dá um passo importante na direção do cumprimento desse objetivo, alinhando sua política interna às diretrizes internacionais de direitos humanos e segurança pública.
Embora a decisão tenha respaldo jurídico robusto, ela também reacende o debate político em torno da posse e porte de armas no país. Parlamentares da oposição, vinculados à bancada da segurança ou ao agronegócio, manifestaram críticas à decisão, alegando “criminalização de CACs” e “excesso de regulação estatal”. Por outro lado, representantes do Ministério da Justiça e da Segurança Pública afirmaram que o novo marco regulatório não visa “desarmar o cidadão de bem”, mas sim coibir o acesso indiscriminado a armamentos letais que muitas vezes acabam desviados para o crime organizado.
A confirmação da constitucionalidade dos Decretos nº 11.366/2023 e nº 11.615/2023 pelo STF reforça o papel do Judiciário como guardião da legalidade e dos direitos fundamentais no Brasil. Em um país com altos índices de violência armada, a decisão sinaliza um reposicionamento do Estado em relação à segurança pública, colocando a vida e a paz social no centro das políticas públicas. O julgamento da ADC 85 pode vir a ser um divisor de águas na condução do tema no país, abrindo caminho para um debate mais racional, técnico e baseado em evidências sobre o papel das armas na sociedade brasileira.