O encerramento formal de um conflito armado é frequentemente associado a um sentimento de alívio e ao início da recuperação. Contudo, a análise da experiência subjetiva do indivíduo judeu no período pós-conflito revela um estado de “silêncio estranho,” permeado por um “misto de alívio e exaustão.” Esta exaustão, segundo o relato, não provém apenas da violência experimentada diretamente ou do luto vicário pelo sofrimento alheio, mas da intensificação de um sofrimento invisível, de natureza psicossocial.
Este artigo visa explorar academicamente esta “dupla carga” do sobrevivente: o trauma vicário decorrente da guerra (Figley, 1995) somado ao desgaste crônico das microagressões antissemitas no ambiente social imediato. Propõe-se que a experiência de ser judeu após o conflito está intrinsecamente ligada à necessidade de lidar com a instrumentalização da dor do grupo, que é frequentemente reinterpretada para culpabilizar as vítimas.
O Trauma Vicário e a Exaustão Pós-Conflito
O conceito de Trauma Vicário (ou Trauma Secundário) (Figley, 1995) é crucial para entender a “exaustão profunda” sentida por indivíduos distantes da zona de combate, mas emocionalmente conectados à sua comunidade. A exposição repetida a relatos de violência, morte e reféns, amplificada pela mídia e redes sociais (tal como sugerido em estudos sobre o tema, ver Gil, 2023), gera sintomas de estresse pós-traumático sem a exposição direta ao evento.
No contexto judaico, o trauma vicário é intensificado pela memória histórica da perseguição (Hirsch, 2012). O relato afirma: “Ser judeu é carregar a memória do exílio, da perseguição e, ao mesmo tempo, da resistência.” O conflito atual, portanto, não é vivido isoladamente, mas como a reativação de um trauma transgeracional (Kellermann, 2009), exacerbando o sentimento de vulnerabilidade histórica. O alívio pela “salvação de vidas” é rapidamente sobreposto pelo cansaço de uma luta que se percebe como interminável.
Antissemitismo Sutil: Microagressões e a Teoria do Bode Expiatório
O principal catalisador para a exaustão psicológica é a emergência do antissemitismo nas “entrelinhas do cotidiano.” Longe das manifestações de ódio explícito, o relato aponta para uma forma sutil e insidiosa de discriminação.
As Microagressões Antissemitas
O conceito de Microagressões (Sue et al., 2007) – comentários e ações verbais, comportamentais e ambientais que comunicam hostilidades ou desrespeitos depreciativos a indivíduos de grupos minoritários – encaixa-se perfeitamente na descrição do desabafo. A dor é infligida por:
- Comentários de Justificação/Culpabilização: Frases que buscam “justificar o sofrimento de um povo inteiro como se fosse um castigo divino, uma ‘humilhação necessária'”. Tais comentários, vindos de pessoas que se dizem “esclarecidas,” negam a legitimidade da dor e impõem a culpa teológica ou moral à vítima.
- Ironia Disfarçada de Sabedoria: “Comentário ‘espiritualizado’, uma suposta profecia, uma ironia disfarçada de sabedoria,” que sutilmente coloca o “povo judeu… como alvo.”
Essas microagressões forçam o indivíduo à “serenidade fingida,” um mecanismo de autoproteção e dissociação que consome recursos cognitivos e emocionais vitais, contribuindo significativamente para a “dor invisível” e a exaustão.
A Instrumentalização do Bode Expiatório
O sentimento de ser “novamente colocado como alvo, como bode expiatório da dor do mundo,” remete diretamente à Teoria do Bode Expiatório (Girard, 1982; Adorno et al., 1950). Esta teoria postula que, em tempos de crise social, tensões e frustrações coletivas são desviadas para um grupo minoritário, que é simbolicamente sacrificado para restaurar a coesão social.
No contexto pós-conflito, a busca por uma narrativa simplista e moralmente satisfatória leva à ressurreição de tropos antissemitas seculares (Adorno et al., 1950), onde o judeu é culpabilizado pelo caos global ou pelo próprio conflito, desviando a atenção das complexidades geopolíticas e das responsabilidades diversas (Janine Ribeiro, 2018).
Persistência e Resiliência: A Resposta Identitária
Apesar da dupla carga de trauma e microagressões, o relato culmina numa poderosa afirmação de resistência. A persistência é identificada como a característica definidora da identidade judaica.
- Fé Forjada na Adversidade: A fé “que herdei não é frágil. Ela nasceu em meio às cinzas, caminhou por desertos, atravessou séculos.” A resiliência não é vista como uma qualidade inata, mas como o resultado de um processo histórico de enfrentamento e superação da aniquilação (Kellermann, 2009).
- O Imperativo Existencial da Persistência: A frase Am Israel Chai (“o povo de Israel vive”) atua como um manifesto. A persistência é a capacidade de “seguir acendendo luzes, celebrando a vida, estudando, trabalhando, amando, acreditando.” Este é o ato final de resistência contra o projeto de apagamento: a afirmação da vida e da continuidade cultural em face da dor e do estigma. O judeu não apenas sobrevive; ele persiste na sua plena existência.
Conclusão
A transição para o pós-conflito impõe ao indivíduo judeu uma exaustão complexa: a soma do luto e do trauma vicário com a gestão diária das microagressões antissemitas, que sutilmente o reconduzem à posição de bode expiatório. O preço da sobrevivência é a necessidade de operar numa “serenidade fingida” para lidar com a “dor invisível” do estigma. Contudo, a força motriz da identidade judaica reside na sua persistência histórica. Esta resiliência é um mecanismo ativo de afirmação cultural e existencial que se manifesta na capacidade de continuar a viver e a celebrar, garantindo que “nenhuma escuridão será capaz de apagar essa chama.”
O estudo sugere a urgência de pesquisas que mapeiem e classifiquem as microagressões antissemitas na sociedade contemporânea e que explorem os mecanismos de resiliência transgeracional em comunidades que enfrentam a ameaça do bode expiatório.
Referências
Adorno, T. W., Frenkel-Brunswik, E., Levinson, D. J., & Sanford, R. N. (1950). The Authoritarian Personality. New York: Harper and Row. (Referência à teoria da personalidade autoritária e preconceito.)
Figley, C. R. (Ed.). (1995). Compassion fatigue: Coping with secondary traumatic stress disorder in those who treat the traumatized. New York: Brunner/Mazel. (Referência fundamental ao Trauma Vicário.)
Girard, R. (1982). The Scapegoat. Baltimore: Johns Hopkins University Press. (Referência à Teoria do Bode Expiatório.)
Hirsch, M. (2012). The Generation of Postmemory: Writing and Visual Culture After the Holocaust. New York: Columbia University Press. (Referência ao trauma transgeracional e pós-memória.)
Janine Ribeiro, R. (2018, Abril 4). Nas situações de grande conflito, sociedades buscam “bode expiatório”. Jornal da USP. (Referência à busca pelo bode expiatório em conflitos sociais.)
Kellermann, N. P. F. (2009). Holocaust trauma: Psychological effects and treatment. International Journal of Mental Health, 38(2), 77-93. (Referência ao trauma histórico e transgeracional.)
Sue, D. W., Capodilupo, C. M., Torino, G. C., Bucceri, J. M., Holder, A., Nadal, K. L., & Equin, M. (2007). Racial microaggressions in everyday life: Implications for clinical practice. American Psychologist, 62(4), 271–286. (Referência fundamental ao conceito de Microagressões.)