Dar de si: A essência da generosidade no mundo contemporâneo

Wagner Constâncio
8 minuto(s) de leitura

Em sua obra-prima O Profeta, Khalil Gibran oferece reflexões profundas sobre a natureza humana, e uma das mais tocantes é sua visão sobre doações. Em um mundo cada vez mais orientado por interesses e recompensas, o ato de doar — genuinamente e sem segundas intenções — tornou-se uma arte rara e, ao mesmo tempo, necessária. Este artigo se propõe a explorar as camadas do texto de Gibran, relacionando sua sabedoria poética com os comportamentos cotidianos e os desafios da generosidade em nossa sociedade atual.


Doar não é dar coisas: é dar-se

Khalil Gibran começa dizendo: “Vós pouco dais quando doais vossas posses. Apenas quando doais de vós próprios é que dais, realmente.”
Essa frase toca o cerne da generosidade verdadeira. No dia a dia, muitas pessoas associam o ato de doar a entregar dinheiro, roupas ou alimentos. Embora esses gestos sejam importantes, Gibran nos lembra que o verdadeiro valor está no quanto de nós colocamos nessas ações. Um olhar atencioso, um tempo dedicado, um ouvido que escuta com empatia — tudo isso são formas de doação muito mais preciosas do que simples transferências materiais.


O medo de precisar: a prisão invisível

“Pois o que são vossas posses senão coisas que guardais por temerdes necessitá-las amanhã?”

Vivemos em uma cultura de acumulação. Guardamos para o “se” e o “talvez” do futuro. Esse medo do amanhã cria uma sociedade ansiosa, desconectada e avessa ao desprendimento. É como o cão que enterra ossos em excesso, desconfiado de um amanhã que talvez nunca chegue. No fundo, o medo da necessidade é a própria necessidade tomando forma dentro de nós.

No cotidiano, isso se manifesta em atitudes como recusar ajuda a alguém por achar que “pode faltar”, ou então doar apenas o que “sobra”. Esse tipo de doação, ainda que útil, não transforma nem quem dá nem quem recebe.


Dar com intenção: o ego travestido de generosidade

“Há os que dão pouco do muito que têm — e fazem-no em troca de reconhecimento…”

Essa observação de Gibran é um alerta atual. Vivemos na era da exposição, das redes sociais, onde gestos de caridade muitas vezes são registrados com selfies e hashtags. É a caridade performática, onde o desejo por aprovação pública desmerece a essência da doação. A doação, quando movida pelo ego, não é um ato de amor, mas uma transação de vaidade.

Por outro lado, Gibran também reconhece aqueles que dão com fé na vida, sem esperar retorno, confiantes de que seus “alforjes nunca estão vazios”. São essas pessoas que verdadeiramente vivem em abundância, não pelo que têm, mas pelo que são.


A doação que flui como o perfume da murta

“Dão como a murta do vale exala seu aroma no ar.”

Essa metáfora simples e belíssima resume a forma mais elevada de doação: aquela que é natural, espontânea, sem esforço e sem cálculo. É o amor em movimento. No cotidiano, isso pode ser visto em quem oferece ajuda sem ser chamado, ou que percebe a necessidade de outro antes mesmo que ele peça. São os pequenos gestos que não esperam aplauso, que não se anunciam — e por isso, tocam tão profundamente.


Dar antes que o tempo tire

“Tudo o que possuís algum dia será dado; Portanto, dai agora…”

Esta é uma das passagens mais urgentes do texto. Gibran nos lembra de que tudo é passageiro — nossa saúde, nossas posses, nosso tempo. A pergunta que ele nos deixa é simples: por que esperar?

Muitos esperam pela “hora certa” para ajudar alguém, para dizer uma palavra boa, para fazer uma doação significativa. Mas a verdade é que a hora certa é agora. Dar hoje é um privilégio; dar amanhã pode ser apenas uma obrigação herdada por quem ficou.


O mérito e a dignidade de quem recebe

“Dizeis muitas vezes: ‘Eu daria, mas apenas a quem merece.’”

Essa frase revela um julgamento comum, muitas vezes inconsciente. Avaliar quem “merece” receber é uma forma de se colocar acima do outro — como se o doador fosse juiz e não irmão. Gibran destrói esse raciocínio elitista com a simplicidade da natureza: “As árvores em vossos jardins não dizem tal coisa…” Elas dão frutos livremente, sem distinção.

No cotidiano, isso nos leva a refletir: quando evitamos ajudar alguém por julgar seu passado, sua aparência ou sua condição, estamos negando mais a nós mesmos do que ao outro. Porque doar é tanto um gesto de humildade quanto de amor.


O dom de receber

Gibran também inverte a perspectiva e fala sobre a nobreza de receber. Em nossa cultura, muitas vezes quem precisa sente vergonha. O orgulho ferido impede o pedido de ajuda, e muitos se calam em silêncio diante da necessidade. Gibran nos convida a olhar o receptor não como alguém inferior, mas como parte essencial da equação do amor. Afinal, “quem sois vós a quem os homens precisem abrir seu íntimo para que enxerguem seu mérito?”

Receber com gratidão, sem culpa, também é um ato de grandeza. Assim como dar com alegria é um ato de fé.


Conclusão: Vida dá à vida

Gibran encerra dizendo: “Na verdade é a vida que dá para a vida — enquanto vós, que vos considerais doadores, sois meras testemunhas.”

Essa frase coloca o ego em seu devido lugar. Não somos autores da generosidade, mas instrumentos dela. Quando doamos de verdade, nos tornamos canais da própria vida. A generosidade, então, deixa de ser um ato e passa a ser uma maneira de viver.

Doar é permitir que a vida circule entre nós. E quanto mais deixamos essa corrente fluir, mais descobrimos que nada nos falta. Porque quando damos de nós mesmos, recebemos algo infinitamente maior: sentido.


Referências

  • GIBRAN, Khalil. O Profeta. Trad. de Mansour Challita. Rio de Janeiro: Record, várias edições.
  • FROMM, Erich. A Arte de Amar. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
  • NASSAR, Luis. O poder de doar. São Paulo: Gente, 2012.

Compartilhe este artigo
Deixe um comentário
Inscrever-se
Notificar de
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários