A ruptura como reconstrução: Um estudo sociológico do assunto

Wagner Constâncio
7 minuto(s) de leitura

RESUMO
Este estudo propõe uma análise sociológica, entrelaçada a um relato pessoal, que expõe as dinâmicas de estigmatização, exclusão simbólica e reconfiguração identitária diante da ruptura de vínculos interpessoais. Com base nas teorias de Erving Goffman, Zygmunt Bauman, Hannah Arendt e em referências culturais judaicas, especialmente do Talmud e da obra de Yehuda Amichai, o estudo discute como a dor pessoal pode ser transformada em ferramenta de resistência e reconstrução moral.

Palavras-chave: Estigma. Ruptura. Sociologia. Judaísmo. Resistência.

1 – INTRODUÇÃO


As relações humanas são permeadas por trocas afetivas, expectativas morais e processos de reconhecimento. Contudo, situações de vulnerabilidade, como momentos de crise psíquica, muitas vezes desestabilizam essas estruturas e revelam a fragilidade dos laços sociais. A seguir, o relato de uma experiência pessoal serve como base para uma reflexão sociológica.

2 – O RELATO: DA CRISE À ESCOLHA ÉTICA DA RUPTURA


Durante um período de crise emocional profunda, uma pessoa que eu considerava próxima afastou-se de mim ao afirmar que não poderia conviver com alguém em sofrimento. Esse afastamento foi repentino, frio e baseado em um julgamento de minha condição, o que me causou profunda dor. A pessoa em questão foi apresentada a mim por um suposto amigo, com quem tive convivência por cerca de dez anos, inclusive com parcerias profissionais.

Após o afastamento dessa pessoa, o suposto amigo tentou justificar sua postura alegando que poderia continuar mantendo amizade com ambos. No entanto, essa neutralidade, para mim, representava cumplicidade com a indiferença que sofri. Diante disso, rompi não apenas os vínculos com essa pessoa e com o suposto amigo, mas também com todos os que, direta ou indiretamente, se mantinham próximos a eles, encerrando esse ciclo entre setembro de 2023 e abril de 2024.

3 – O ESTIGMA DA CRISE: GOFFMAN E A EXCLUSÃO SIMBÓLICA


Conforme Goffman (1988), indivíduos em situação de vulnerabilidade são marginalizados por não se enquadrarem nos padrões normativos. A rejeição que sofri em meu momento de crise reflete esse estigma social — uma tentativa de tornar invisível a dor do outro, conduzindo à exclusão simbólica.

4 – REAPROXIMAÇÃO TARDIA E INCÔMODA


Meses depois, essa pessoa que havia se afastado me procurou por telefone para pedir desculpas. A princípio, considerei esse gesto com cautela. Em um momento em que me sentia um pouco melhor, decidi abrir um canal de diálogo, convidando-a para um café. No entanto, diante da minha proposta simples, a pessoa começou a se esquivar e apresentou desculpas incoerentes. Ficou evidente que não havia sinceridade ou respeito à minha tentativa de reconstrução. Disse a ela que seguisse com sua vida e que eu também seguiria com a minha, com dignidade.

Depois de ter escolhido se afastar de mim no momento em que eu mais precisava, essa pessoa passou a buscar reaproximação de forma indireta — por meio de terceiros, observando de longe, aparecendo em lugares que eu frequentava em busca de paz, inclusive ambientes religiosos. Essa insistência, em vez de demonstrar arrependimento verdadeiro, apenas intensificou meu desconforto e reforçou o desrespeito à minha necessidade de espaço e silêncio.

5 – RELAÇÕES LÍQUIDAS E O DESCARTE AFETIVO: BAUMAN E A FRAGILIDADE DOS LAÇOS


Bauman (2003) argumenta que, na modernidade líquida, os vínculos afetivos tornam-se cada vez mais frágeis e descartáveis. O comportamento do suposto amigo, ao tentar manter-se neutro entre duas partes em conflito ético, reflete essa fluidez. Rompi esse vínculo também, compreendendo que não posso ser amigo dos meus inimigos, e que quem relativiza minha dor compactua com ela.

6 – A REESCRITA DA DOR: ARENDT E A RESISTÊNCIA NARRATIVA
Arendt (2016) afirmou: “Toda dor pode ser suportada quando reescrevemos nossa história”. Reescrever este episódio, com consciência e firmeza, tornou-se uma forma de cura. A recusa em silenciar diante da injustiça e da exclusão é, por si só, uma forma de resistência.

7 – AMICHAI E O ESPAÇO DA DÚVIDA: POESIA COMO INTERPRETAÇÃO SOCIOLÓGICA


O poema de Yehuda Amichai (2005) traz a reflexão:

“Do lugar em que temos razão jamais crescerão flores na primavera.
O lugar em que temos razão está pisoteado e duro como um pátio.
Mas dúvidas e amores escavam o mundo como uma toupeira, como a lavradura.
E um sussurro será ouvido no lugar onde houve uma casa que foi destruída.”

Esse trecho nos lembra que certezas impenetráveis não permitem renovação. A reconstrução só ocorre quando há espaço para a dúvida, para o amor e para a reconstrução simbólica de si mesmo.

8 – REFERÊNCIAS JUDAICAS: TORAH, TALMUD E A MORALIDADE DAS ALIANÇAS


Na Torah (Êxodo 23:1–2), somos advertidos contra seguir a maioria para fazer o mal. O Talmud Babilônico (Pesachim 113b) ensina que não devemos manter amizade com quem age contra os justos. Romper com pessoas que se aliaram a quem me feriu foi, portanto, um ato coerente com valores éticos profundos. Como reforço, a tradição judaica entende que “aquele que é amigo do opressor é inimigo do justo” (Midrash Tehillim, 1:5).

9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS


Nunca mais quero ver essas pessoas novamente. Arrependi-me amargamente por tê-las conhecido, mas reconheço que essas experiências me fortaleceram. Hoje, compreendo que não posso ser amigo de meus inimigos — nem daqueles que optam por omissão diante do sofrimento alheio. A ruptura me ensinou a viver com mais lucidez, a honrar minha própria história e a valorizar os verdadeiros laços.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

AMICHAI, Yehuda. Poemas escolhidos. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

TORAH. Êxodo 23:1–2.

TALMUD Babilônico. Pesachim 113b.

MIDRASH Tehillim, 1:5.

Compartilhe este artigo
Deixe um comentário
Inscrever-se
Notificar de
0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários