STF reconhece omissão institucional em tipificação de crime por retenção dolosa de salário

Wagner Constâncio
8 minuto(s) de leitura

Proteção salarial e omissão legislativa: Supremo Tribunal Federal dá ultimato ao Congresso por descumprimento de mandado constitucional de criminalização

Em uma decisão histórica que reacende o debate sobre a eficácia dos direitos sociais no Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reconheceu a mora legislativa do Congresso Nacional quanto à regulamentação do artigo 7º, inciso X, da Constituição Federal de 1988, que determina a criminalização da retenção dolosa de salários de trabalhadores urbanos e rurais. A deliberação foi proferida no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADO) 82/DF, encerrado em plenário virtual no dia 23 de maio de 2025, com relatoria do Ministro Dias Toffoli.

A decisão representa um marco jurídico na luta pela efetividade dos direitos fundamentais sociais e destaca o papel do STF como garantidor da ordem constitucional, diante da persistente inércia do Poder Legislativo. O Tribunal determinou um prazo de 180 dias para que o Congresso Nacional edite a lei exigida pela Carta Magna, sob pena de responsabilização institucional por omissão inconstitucional continuada.

O dever de legislar: uma ordem esquecida

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o artigo 7º, X, estabelece, de forma inequívoca, que a retenção dolosa de salários deve ser tratada como crime. Apesar da clareza da norma constitucional e da importância da proteção ao salário — verba de caráter alimentar e essencial à dignidade da pessoa humana —, o Legislativo permanece há quase quatro décadas sem regulamentar a previsão, ignorando um mandado constitucional de criminalização, cuja função é proteger os trabalhadores da arbitrariedade e do abuso por parte de empregadores inescrupulosos.

A criminalização da conduta, nos moldes exigidos pela Constituição, visa combater práticas sistemáticas de precarização das relações laborais, especialmente em contextos de vulnerabilidade, como o trabalho rural, o emprego informal e os setores com baixa fiscalização trabalhista.

A omissão, nesse sentido, não é neutra. Ela perpetua a impunidade de condutas altamente reprováveis, ao mesmo tempo em que compromete a segurança jurídica e o respeito aos direitos sociais mínimos.

STF: omissão legislativa e separação de Poderes

Ao reconhecer a mora legislativa, o STF baseou-se em precedentes anteriores, como as ADOs 74 e 85, reafirmando que a fixação de prazo para cumprimento de mandado constitucional não constitui violação ao princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF/88), mas, sim, um imperativo de concretização dos direitos fundamentais.

Para o Ministro Dias Toffoli, relator da ADO 82, o tempo decorrido desde a promulgação da Constituição já ultrapassa qualquer justificativa plausível para a omissão. “Não se trata de inovação, mas de dar efetividade a um comando constitucional direto e claro”, destacou em seu voto.

O Tribunal destacou ainda que a ausência da lei inviabiliza a persecução penal da conduta de retenção dolosa de salário, configurando um vácuo normativo inaceitável num Estado Democrático de Direito. A jurisprudência já havia sinalizado esse entendimento ao afastar a possibilidade de se aplicar analogicamente o crime de apropriação indébita (art. 168 do Código Penal), por não corresponder à natureza e gravidade da conduta.

Retenção dolosa de salários: além da inadimplência

Diferente do simples atraso no pagamento, a retenção dolosa de salários pressupõe intenção deliberada do empregador em reter a remuneração devida ao trabalhador, mesmo dispondo dos recursos necessários. Trata-se, portanto, de uma conduta dolosa, que afronta diretamente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da função social da empresa.

Os efeitos dessa prática são devastadores. Ao privar o trabalhador dos meios de subsistência, ela compromete não apenas a sua capacidade de prover o próprio sustento, mas também a segurança alimentar e habitacional de todo o núcleo familiar. O salário, neste contexto, é mais que um direito: é o elo entre a pessoa e a possibilidade de uma vida minimamente digna.

A ausência de uma tipificação penal específica gera um déficit de proteção jurídica, dificultando a responsabilização dos infratores e incentivando práticas abusivas, principalmente em regiões de baixa fiscalização e grande informalidade.

Dimensão internacional e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

A decisão do STF também dialoga com compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente no âmbito da Agenda 2030 da ONU. O caso se insere diretamente no escopo do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 (ODS 16), que trata da promoção de sociedades justas, pacíficas e inclusivas, com destaque para o fortalecimento do Estado de Direito e o acesso igualitário à justiça.

A falta de criminalização da retenção dolosa de salários compromete a capacidade do país de cumprir suas metas internacionais, além de enfraquecer os mecanismos de proteção aos direitos humanos. A atuação do STF, nesse sentido, é uma tentativa de alinhar o ordenamento jurídico interno com os compromissos assumidos no plano global.

Consequências políticas e jurídicas da decisão

Com a fixação do prazo de 180 dias, o Congresso Nacional passa a ter a obrigação constitucional e judicial de legislar sobre a matéria. O não cumprimento desse dever poderá ensejar medidas coercitivas adicionais, como o acionamento de mecanismos de controle concentrado ou até mesmo a edição de normas pelo próprio Supremo em caráter excepcional, caso a omissão se perpetue.

Além disso, a decisão pode abrir precedentes para outras omissões legislativas em matérias sensíveis, reforçando o papel do STF como órgão garantidor da efetividade constitucional e ampliando a atuação judicial em casos de inércia do Legislativo.

No campo político, a decisão coloca pressão sobre as lideranças partidárias e sobre as comissões temáticas do Congresso, que terão que deliberar com celeridade sobre um tema que, embora relevante, tem sido historicamente negligenciado.

Conclusão: um passo em direção à justiça social

A ADO 82/DF representa uma inflexão importante na jurisprudência constitucional brasileira, ao resgatar a força normativa dos direitos sociais e reafirmar a centralidade do salário como direito humano fundamental. A decisão do STF não apenas reconhece a mora legislativa, mas também denuncia o estado de abandono jurídico de milhões de trabalhadores no país.

Mais do que uma resposta judicial, trata-se de um chamado à responsabilidade institucional. O Brasil tem agora uma nova oportunidade — talvez a última — de corrigir uma injustiça histórica e de alinhar sua legislação penal ao espírito de solidariedade e justiça social inscrito na Constituição de 1988.

O prazo de 180 dias já começou a contar. A Constituição não pode mais esperar.

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